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Entrevista com o DVS1: “A tecnologia é uma benção e uma maldição”

Uma visão única e respeitada. Um nome que se espalha de boca em boca sem precisar de apresentação. Conseguimos um momento com Zak Khutoretsky, mais conhecido como DVS1, no passado Amsterdam Dance Event.

O maestro americano, o responsável pelas famosas labels HUSH e Mistress Recordings, não só toca techno e música eletrônica – ele vive e respira isto. Ainda assim, tem vindo a evoluir no seu trabalho em projetos como The Wall of Sound e Aslice. Tivemos a oportunidade exclusiva de mergulhar no seu mundo – as suas visões sobre o underground, festivais vs discotecas, e muito mais. Continua a ler para saber tudo!


Aqui estamos no ADE com o Zak, mais conhecido como DVS1. O que estás a achar do ADE até agora?

Chuvoso. Está a chover demasiado, mas está a correr bem. Chegamos ontem e começamos logo a dar algumas entrevistas. Tivemos o RA Exchange Live ontem, com uma plateia muito interessante e um ótimo moderador. Podíamos ter ficado lá a conversar durante horas, mas infelizmente tivemos que parar ao fim de uma.

Alguns acham que ser produtor e DJ são complementares, mas nem sempre intrínsecos. Qual é a tua opinião sobre isto e o que dirias serem os teus musts como produtor?

São poucas as pessoas que acho que são realmente capazes de dominar, e quando digo dominar, quero dizer ser muito bom e passar horas e anos a aperfeiçoar as suas técnicas. Eu comecei como DJ e depois tornei-me produtor. Mas na altura em que cresci, havia uma separação clara entre quem eram os DJs e os produtores, e podias ter uma carreira sendo ambos.

O problema hoje em dia é que quase não se pode ganhar a vida sendo produtor. As pessoas que criam boa música de repente são empurradas para os holofotes e tem que brilhar. Graças a tecnologia, até podem conseguir brilhar tecnicamente. Mas eu acho que a alma de um DJ e a alma de um produtor geralmente são duas coisas separadas. Eu acho que para ser um bom produtor é preciso tempo. Eu sinto-me confiante em falar como DJ. Mas acho que preciso de passar muito mais tempo a aperfeiçoar as minhas capacidades para poder falar como produtor. Acho que tudo se resume a tempo e experiências, positivas ou negativas… Tens que experimentar coisas novas e encontrar a tua voz da forma que achares melhor.

De alguma forma conseguiste ficar do lado “mais saudável” da tecnologia, com projetos visionários como Aslice. O que te fez apostar nesse conceito? Está a correr como esperavas?

A Tecnologia é uma benção e uma maldição. Por um lado, a tecnologia permite que as pessoas passem a frente ou cheguem a lugares mais rápido sem realmente ter que colocar o trabalho, o conhecimento ou a experiência. Mas, por outro lado, a tecnologia também dá oportunidades para pessoas que talvez nunca as tivessem no passado. Hoje é possível que alguém muito distante da indústria possa experimentar ser DJ e/ou produtor. Há 20 anos essa mesma pessoa não teria acesso a drum machines, sintetizadores ou mesas de mistura.

A parte má é, claro, agora qualquer um pode ser DJ ou produtor e usar os presets. O projecto Aslice, na verdade está relacionado com a tua primeira pergunta. Estamos a tentar reequilibrar a ideia de que nem toda a gente tem que ser DJ. Um DJ toca a música de outras pessoas, e sem música, a pista de dança estaria completamente silenciosa e não teríamos nada para oferecer.

A nossa esperança é que alguém como eu, que ganha dinheiro a tocar a música de outras pessoas, agora possa dar, via tecnologia, um botão fácil para que possamos fazer algo bom e passar parte dos ganhos de volta para os produtores. Eu colocaria o projeto no lado que usa a tecnologia de forma positiva para impactar a comunidade e devolver algo ao longo do nosso processo de sucesso.

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Com The Wall of Sound, refletiste o teu desacordo com as pistas de dança atuais e decidiste mapear a tua própria. Sentiste uma mudança no público que a presenciou?

Para quem não entende ou não sabe o que é o Wall of Sound, nem é um conceito novo. Fui apenas eu a pegar num conceito com o qual cresci. Antes de mim, alguém foi influenciado, provavelmente voltando aos sistemas de som reggae dub, onde toda a gente dançava para uma enorme parede de colunas.

O DJ ficava do outro lado da sala ou até atrás do sistema de som. O DJ não era o foco, a música era o centro e o som era a forma como era entregue e o que se sentia. Talvez tenha sido apenas o momento certo para eu apresentar esta ideia novamente porque era uma resposta a tudo que eu acho que está errado na nossa indústria agora.

O DJ é apenas uma parte de todas as partes do processo que criam a magia da noite. O foco deveria realmente estar na pista de dança e não nalguma figura num palco a enviar corações e a dançar como um palhaço.

DVS1 para Xceed (2023)

Agora, o DJ tornou-se uma estrela do rock. O DJ tornou-se o centro das atenções. O DJ está  num palco com luzes brilhantes e LEDs… E nós não importamos. Quero dizer, importamos, mas somos apenas uma parte de todas as partes do processo que criam a magia da noite. Se o objetivo é conectar todos e unir todos, então o foco deveria realmente estar na pista de dança e não nalguma figura num palco a enviar corações e a dançar como um palhaço. Eles deveriam estar focados na arte, na música e na entrega, e as pessoas deveriam estar focadas umas nas outras, na conexão com e na pista de dança e no som.

Então, para tentar responder à pergunta que me fizeste: Sim, notamos uma grande diferença na pista de dança. No início, especialmente as gerações mais novas, não sabiam o que fazer quando não viam o DJ. Talvez tenham demorado alguns minutos para se re-ambientar e pensar: “Mas espera, para onde olho? Para onde me viro? Qual direção? Onde está o meu espaço?”. Mas aí começamos a ver as pessoas a virar-se umas para as outras e a dançar na direção das colunas. Na realidade, as pessoas vão olhar para onde está a música, de onde está a vir o som físico. O DJ não precisa estar neste lugar. O DJ pode estar em qualquer sítio.

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The Wall of Sound in Los Angeles

Vamos falar sobre outro tópico controverso: festivais. Como artista de discoteca… Alguma vez pensaste num conceito diferente entre uma discoteca e um festival que te faria sentir realizado como amante da música electrónica e artista?

Quando eu expressei a minha opinião muito forte no video The School of House há alguns anos atrás sobre os festivais destruírem a cultura das discotecas, não disse que os festivais não deviam existir. Eu só queria deixar bem clara as diferenças que um festival cria na nossa indústria e na nossa comunidade, em termos de níveis de atenção e sets curtos de DJ, comparando com uma discoteca. Um lugar onde arte e comunidade são criadas. E as pessoas disseram, “Mas tu ainda tocas em festivais!”. Claro que sim! Porque os festivais também representam quase 40% a 50% do nosso ano de música. Não é que os festivais não possam existir, eu só gostava que houvesse um equilíbrio saudável e queria que os artistas e o público o entendesse.

Festivais podem ser divertidos: estar ao ar livre, talvez no verão… Essas coisas todas. Mas se destroem a cultura que sustenta a comunidade, pessoas marginalizadas e todos estes grupos que realmente vivem para as discotecas, então os festivais destroem tudo pelo qual tanto trabalhamos. Eu só gostava que houvesse um equilíbrio mais saudável, um não afetando tanto o outro, e novamente o público saber para onde vai o dinheiro, e entendendo o valor de apoiar a comunidade e os artistas, e não apenas o entretenimento num festival.

O que é o underground hoje em dia? Será que precisamos de uma nova era? Novos artistas e gêneros a começar do zero para de alguma forma fazer renascer a genuinidade do passado?

Podem olhar para mim e dizer, “Ah, mas tu és tão underground!”. E eu argumentaria dizendo “Eu sou bem-sucedido, demasiado para ser underground”. A diferença é que eu tenho a estética underground, trago a cultura e a energia underground com que cresci e os valores para a minha posição de sucesso. Talvez num nível comercial.

Acho que há duas maneiras de ver isso, “o verdadeiro” underground que eu não conheço, e tu talvez também não. Não é anunciado abertamente. É o que descobres quando vives numa cidade e conheces algumas pessoas e elas dizem, ” Queres vir a uma festa muito fixe num pequeno armazém com 100 pessoas?” Isto é o verdadeiro underground. Muitas vezes, também é onde alguma da energia mais criativa é feita. Um dia, alguém descobre e leva-o para um palco maior.

Vai sempre haver um underground em todas as culturas; na arte, comida, música, em tudo. No momento em que alguém com dinheiro vê isso e quer torná-lo maior, perde talvez um pouco da sua credibilidade. Acredito que podemos trazer valores e moralidades underground para algo um pouco maior, mesmo que não seja mais “underground” pela definição, mas valorizamos o underground de onde veio e continuamos a carregar essas coisas.

Vai sempre haver um underground em todas as culturas; na arte, comida, música, em tudo. No momento em que alguém com dinheiro vê isso e quer torná-lo maior, perde um pouco da sua credibilidade.

– DVS1 para Xceed (2023)

Para teres valores tão certos como os teus, deves ter tido algumas batalhas internas. O que dirias aos novatos sobre como se manterem fiéis a si mesmos?

Somos ensinados que se começares por baixo e se trabalhares arduamente vais subir, subir e subir, até estar no topo. Até seres o chefe, até seres o dono da empresa.

Mas na arte, o topo nem sempre é o sucesso. O sucesso chega quando estás numa posição de liberdade como artista, mas também percebes que este é o limite antes de ter que tomar decisões com as quais não concordas. E para mim, felizmente, o meu momento de sucesso foi quando eu já era mais velho, na casa dos 30, e já sabia quem era.

Quando fui confrontado com a pergunta “Vais por este caminho ou pelo outro?”, na verdade foi uma decisão muito fácil para mim: “Não vou fazer isto porque minimizaria a minha autenticidade como artista e o que acredito em troca de dinheiro“. Isto é uma posição muito única porque, quando estás a começar, pensas que todas as oportunidades e todas as ofertas de dinheiro significam sucesso. Mas não são.

Acho que como artistas devem saber dizer “Isto é suficiente porque aqui eu ainda posso manter a minha arte, mas posso sobreviver com isso”. Eu digo sempre a novos artistas para não deixarem os seus trabalhos fixos, porque o trabalho fixo e o dinheiro que ganham dar-lhe-há a liberdade de serem artistas. Não tentem apenas ser um artista, porque enfrentarão decisões que vão desafiar a vossa visão da arte.

Photo: Dan Reid

Algumas partes da cena techno estão a desaparecer nas novas gerações e eles estão a voltar-se para artistas como tu, tentando encontrar algo mais puro, mais underground… E se, sem querer, te tornares a estrela do rock da qual falas, sem sequer tentares?

Depende, se a definição de estrela do rock é a pessoa para quem as outras olham e admiram, então estou feliz em ser uma “estrela do rock”. Para mim, uma estrela do rock é uma pessoa que fica num palco e acha que o mundo gira à sua volta. Eu percebo que estou nesta posição por todos os que estão ao meu redor. E sim, a minha arte, a minha habilidade e minha competência são uma coisa. Mas as pessoas que me apoiam, as que compram bilhetes, as que limpam a casa de banho no armazém onde estou a tocar, também são parte do meu sucesso naquela noite. Eu percebo que não é só sobre mim.

Ontem, na sessão que fizemos, alguém me perguntou: “Eu sou jovem. Tudo à minha volta representa uma versão do techno que não me interessa. Como posso representar o que me interessa?” E eu disse: “Não tentes mudar as pessoas que já estão a ir numa direção que não te interessa. Em vez disso, gasta o teu tempo a encontrar as pessoas que se sentem como tu, que querem o que tu quer e assim ganhas aliados”.

Graças ao que fiz ao longo dos anos, sou independente. Mas posso sair a rua e ver quem são os meus aliados e as pessoas que, eu acho que, partilham os mesmos valores. No final, conectamos e apoiamos uns aos outros. E quando quero encontrar pessoas com ideias semelhantes, só preciso de olhar nessa direção. Não quero tentar convencer alguém que está nos dois lados a se juntar a mim. Não preciso. Só preciso de encontrar as pessoas que estão a ir numa direção semelhante à minha e garantir que estamos todos conectados de alguma forma.

Este hard techno rápido é o EDM desta geração. Só estão vestidos de uma maneira underground.

Toda a gente acha que é música underground, mas não é.

– DVS1 para Xceed (2023)
Photo by @barakistyle

Tens uma visão muito única da música electrónica. Hoje em dia, com tudo o que está a acontecer com o hard techno, assim que experimentas, podes dizer que não tem alma. Precisa de mais alguma coisa, algo com o qual te sentas conectado, é aí que valorizas artistas como tu.

Para muitos jovens, por exemplo nos EUA, quando toda aquela música EDM realmente terrível era popular há 10-15 anos atrás, esta foi a porta de entrada para encontrar música melhor para algumas dessas pessoas. Mas esta foi a introdução deles à música de agora. Este hard techno rápido é o EDM desta geração. Só estão vestidos de uma maneira underground.

Toda a gente acha que é música underground, mas não é. É EDM, é na verdade techno pop, e é a porta de entrada. Eu sempre disse às pessoas, “Não me importo que isso exista. Só quero que as pessoas parem de comparar isso ao techno, porque não é”. Isto não se trata de ego, mas acho que o que eu faço e a música de onde venho, isso sim é underground, techno de verdade. Esta coisa é a porta que tens de abrir para o encontrar. Eu digo às pessoas, “Cresce, espera mais alguns anos, vai a algumas noites em discotecas onde tocam 15 horas deste boom, boom, boom”. A partir do momento em que as portas abrem, já estás cansado e começas a procurar algo diferente.

É bom que isto exista, mas talvez 5-10% dessas pessoas começarão a procurar algo diferente, mais profundo, com mais alma, algo mais, sabes, real. E estes vão encontrar o caminho, sabes? Tudo bem que isto exista. Só não nos coloquem na mesma categoria.

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